Nas negociações de Doha a UE propôs, sem enrubescer, a fabulosa expansão de cotas de 36 mil toneladas. Informalmente, o negociador mencionou que poderia chegar ao volume de 100 mil toneladas, ou 2,5% do seu consumo doméstico! Para se ter uma idéia da insignificância desse número, em 2005 o Brasil exportou quase 350 mil toneladas de carnes avícolas para a UE, sendo mais 60% do volume gravado com proteções altíssimas.
Em meados de 2003, os europeus tomaram a decisão unilateral de ampliar a proteção do setor. Na ocasião, o Brasil vinha exportando cerca de 150 mil toneladas de carne de frango salgada e congelada para processamento na indústria européia, sob uma tarifa de 15,4%. Os europeus decidiram mudar essa classificação jogando o frango salgado na categoria tarifária mais alta dos cortes sem sal, sujeito a uma tarifa de 1.024 por tonelada (70% do nosso atual preço FOB de exportação). O Brasil entrou com um contencioso na OMC - julgado no painel e confirmado no Órgão de Apelação - que obrigou a UE a retomar os níveis de proteção anteriores.
Só que a UE não baixou a guarda e entra, agora, com uma nova arbitrariedade contra o frango, amparada pelo famigerado artigo XXVIII do Gatt 1947, que permite a "desconsolidação tarifária". Ocorre que o sistema Gatt-OMC obriga os países a notificarem as tarifas máximas aplicadas sobre seus produtos, também chamadas de tarifas consolidadas. Mas o referido artigo permite que qualquer membro altere estas tarifas desde que sejam conferidas "compensações" aos países prejudicados.
Como dissemos, tradicionalmente a UE protegia os produtos in natura de aves (leia-se o produtor) com tarifas elevadíssimas e cotas ínfimas. Já os cortes industrializados gozavam de tarifas consolidadas mais baixas, sem cotas. Diante de um mercado de carne in natura ultraprotegido e estagnado, as indústrias do Brasil e da Tailândia decidiram investir na agregação de valor com a exportação de cortes processados de frango e de peru para aquele continente, numa bem-sucedida estratégia de diversificação e adição de valor aos produtos exportados. Nossas exportações nesta rubrica cresceram 350% entre 2000 e 2005. Em junho, a UE informou que vai "reconsolidar" as tarifas dos produtos industrializados de frango e peru nos mesmos níveis do produto in natura. Ou seja, Bruxelas foi também capturada pelo lobby da indústria local de processamento.
As importações européias de carnes in natura e processadas da UE estão longe de ameaçar os produtores e os exportadores europeus, já que elas representam, no total, menos de 5% do consumo. Neste momento, a única alternativa que nos resta parece ser negociar cotas compensatórias, o que vai fatalmente "confinar" as nossas exportações de cortes processados em níveis menores do que os embarques ocorridos no ano passado e muito abaixo do nosso potencial de expansão. Em outras palavras, graças a esta verdadeira peneira de "exceções e escapes" chamada Sistema Gatt-OMC, a UE vai conseguir bloquear não só o crescimento, mas também a ainda incipiente adição de valor da nossa carne avícola, que será submetida a um regime draconiano de cotas de importação.
Se, de um lado, a UE de fato reduziu seus subsídios domésticos, do outro, ela continua determinada a manter intacta a sua muralha medieval de proteções de fronteira, cujos tijolos e argamassa são as megatarifas, as cotas de importação, as salvaguardas, as barreiras não-tarifárias (sanitárias, ambientais, etc.) e agora a reclassificação tarifária permitida pelo artigo XXVIII. Com essa medida a UE se utiliza dos absurdos "escapes" do sistema para limitar o acesso ao seu mercado de cortes processados de aves, com perdas futuras estimadas em US$ 100 milhões ao ano pelo Icone.
Não bastasse essa má notícia, a próxima bola da vez poderá ser a carne bovina, quando Bulgária e Romênia se integrarem à UE e nos forçarem a voltar à mesa de negociação por conta das quase 100 mil toneladas exportadas para esses países.
A elevação unilateral das tarifas de aves representa uma profunda deterioração das relações comerciais entre Brasil e UE, seja nas negociações de Doha ou nas negociações birregionais entre o Mercosul e a UE, que nosso governo afirmou retomar em breve. Os europeus gostam de afirmar que são os maiores importadores mundiais de produtos agropecuários e que seriam um mercado aberto e em expansão. Basta, porém, examinar a nossa pauta de exportações para verificar que, numa dezena de produtos de importância capital, a UE literalmente impede (suínos, açúcar e lácteos) ou limita fortemente (carne bovina, de aves, etanol, óleo de soja, café solúvel, bananas e milho) a expansão das nossas exportações. Que tipo de acordo multilateral ou birregional pode ser feito neste contexto?
A verdade é que, apesar dos "estreitos laços" históricos, culturais e econômicos que nos unem à Europa, o comércio continua dominado pelo diálogo de surdos e por inacreditáveis arbitrariedades ad hoc. Atitudes que passam por cima do calor humano, afetividade e inteligência de nossos povos.
Wagner Oliveira Souza
Santo Antônio de Pádua - Rio de Janeiro - Produção de leite
postado em 02/09/2006
Senhores,
Quero parabenizar toda a equipe da AgriPoint pelas matérias publicadas. Sem dúvida alguma, é a maior fonte de informação que os produtores agropecuários dispõem para se atualizar.
Wagner Oliveira Souza