Mais do que reunificar os dois Brasis que sempre estarão emergindo desta e de outras eleições, é preciso não perder tempo no avanço das reformas. Estou convencido de que o maior problema do Brasil não é pobreza, desigualdade ou uma elite insensível, mas sim a falta de organização e de instituições sólidas. Há enorme consenso de que é preciso reduzir o peso e as contradições do Estado brasileiro, o que começa por uma maior eficiência e coordenação da "elite" governamental.
Estratégias confusas e conflitos não resolvidos resultam em mau uso dos recursos públicos. Um primeiro exemplo está na agricultura. Nos anos 80, o governo brasileiro optou por mudar o foco da política agrícola. Antes, os subsídios dirigiam-se a programas de preços mínimos, estoques reguladores e taxas reais de juros negativas no crédito rural.
O governo decidiu reorientar a política agrícola para a agricultura familiar e a reforma agrária, as duas áreas que hoje mais recebem recursos públicos. O governo Sarney criou um segundo ministério para cuidar desses dois temas. De lá para cá, a coisa se agravou e, hoje, os dois ministérios da área competem por recursos cada vez mais escassos, com visões antagônicas que geram modelos conflitivos de política pública no setor. Burocratas alimentaram a falsa premissa de que o agronegócio se oporia à agricultura familiar e que grandes e pequenos produtores viveriam em mundos distintos. O resultado tem sido uma forte descoordenação entre ministros, burocratas e programas da área.
A política comercial é um segundo exemplo de descoordenação. O governo Lula tentou reorientar a política comercial para os mercados em desenvolvimento, buscando diferenciar-se do governo anterior. América do Sul em vez de Alca. África e grandes nações emergentes da Ásia em vez de países desenvolvidos. O problema é que a metade da América Latina do lado do Pacífico já optou por um modelo de integração profunda com os EUA, a Europa e a Ásia e tem dificuldades em aceitar o modelo de integração vigente no Mercosul, que hoje inclui a Venezuela.
A África é comercialmente pequena e depende umbilicalmente das concessões de acesso a mercados que recebe gratuitamente dos países ricos. Lá, o caminho comercial depende mais de políticas externas de boa vizinhança que de acordos comerciais mais abrangentes, de difícil concretização.
Já na Ásia, nossas exportações se concentram fortemente em commodities agropecuárias e minerais e as importações, em produtos manufaturados, e os dois lados demonstram forte resistência em negociar acordos comerciais que poderiam abalar seus setores menos competitivos.
Ocorre que a política comercial tem sido marcada por uma crescente dissociação entre os anseios do setor privado, que preferiria concretizar a Alca e o acordo com a União Européia (UE), e o governo, que tem insistido nos acordos Sul-Sul, que não se concretizam apesar da persistência diplomática. A dissonância entre governo e setor privado acabou produzindo sucessivos conflitos dentro do próprio governo, com ministros defendendo posições antagônicas e uma paralisia das negociações das três Américas, da América do Sul, do Mercosul, deste bloco com a UE, além de acordos apenas "preliminares" com o resto do mundo em desenvolvimento.
A observação da realidade mostra que a agricultura familiar e a reforma agrária não podem sobreviver sem sistemas integrados de produção de alimentos, fibras e bioenergia, conceitualmente chamados de agronegócio. Cadeias produtivas coordenadas desde a pesquisa genética até o consumidor final não deveriam ser combatidas, já que elas são a condição de sobrevivência de grandes, médios e pequenos produtores. Não há um só exemplo de país que consiga avançar com ministérios disputando poder com visões opostas sobre o mesmo assunto.
Neste início de século 21, as políticas comerciais mais bem-sucedidas do mundo se baseiam em foco e coordenação. Foco nos acordos capazes de criar comércio e investimentos. Política externa e comércio se fazem com o maior número possível de países. Já os acordos comerciais devem, por natureza, ser extremamente seletivos. Sua conclusão depende de grandes esforços de coordenação, não apenas entre o governo e o setor privado, mas, antes de tudo, dentro do próprio governo.
As opções óbvias para os acordos bilaterais e regionais de que o Brasil precisa estão na América Latina, nos EUA e na UE. O Brasil precisa aprimorar as relações comerciais com seus maiores clientes e investidores, com pragmatismo e sem posições apriorísticas. Cada acordo que é assinado no mundo sem a nossa presença gera, por definição, desvios potenciais de comércio e investimentos em nosso desfavor.
Num regime democrático é natural que o país saia "dividido" de uma eleição presidencial e que esta mesma divisão esteja espelhada no novo Legislativo. Só que o Judiciário e o Executivo têm a obrigação de trabalhar sem divisões e ambigüidades. O primeiro precisa zelar pelo estrito respeito ao Estado de Direito. O segundo precisa reger-se por critérios de eficiência, arbitrando as eventuais diferenças com base no interesse nacional, e não no interesse dos grupos de pressão mais estridentes.
Em vez de tentar reunificar os Brasis que emergiram desta eleição, melhor faria o presidente reeleito se aproveitasse a enorme votação que recebeu para montar um governo eficiente, que reduza desperdícios de recursos com políticas equivocadas ou antagônicas e que avance rapidamente nas reformas de que o Brasil tanto precisa, nas áreas política, econômica, jurídica e social.
Paulo Fernando Andrade Correa da Silva
São José dos Campos - São Paulo - Produção de leite
postado em 03/11/2006
Como um lider que batalhou a vida toda pela "redução da jornada de trabalho" pode montar um governo eficiente?
Infelizmente, o desinformado eleitor brasileiro parece ter errado denovo!