O assunto mais quente da edição deste ano foi a disputa entre alimentos e energia. Diversas mesas-redondas debateram o impacto das commodities agroenergéticas nos mercados de energia (combustíveis, eletricidade) e nos mercados de alimentos, rações e fibras.
Ficou claro que os biocombustíveis irão expandir-se por pressão dos consumidores (interesses em energias renováveis que reduzam as emissões de gases de efeito estufa) e dos governos (segurança energética, subsídios, mandatos de mistura, etc.). A experiência brasileira despertou enorme interesse em todas as mesas que trataram do tema. A nossa matriz energética é composta de 44% de energia renovável ante 14% no mundo e apenas 6% nos países da OCDE.
O Brasil tomou a dianteira na corrida mundial dos biocombustíveis, seja pela nossa vasta disponibilidade de recursos naturais (terra, água, clima), seja pelo amplo domínio tecnológico sobre a cana-de-açúcar, a melhor planta para se produzir açúcar, etanol e eletricidade de forma competitiva.
A novidade recente nessa área é a decisão dos EUA e da União Européia (UE) de mais do que duplicar o seu consumo de biocombustíveis nos próximos seis anos. O problema é que essas regiões contam com lobbies agrícolas poderosos, que defendem um sistema autárquico de produção auto-suficiente, a custos elevados.
A expansão do etanol nos EUA está baseada em milho e, no futuro, celulose (palhadas, forragens, restos de madeira). Na Europa, o modelo baseia-se em colza/canola para biodiesel e cereais (trigo, cevada, milho e centeio) e beterraba no caso do etanol. Qualquer opção usada nesses países tende a ser sempre mais cara do que as alternativas possíveis na região tropical do planeta.
Desde que produzida com alta tecnologia, a agroenergia é uma extraordinária oportunidade para os países subdesenvolvidos da América Latina, África e parte da Ásia. Os debates deixaram claro que os dois grandes desafios da próxima década são a abertura global para os biocombustíveis nos mercados desenvolvidos - que, ao contrário do que ocorre no petróleo, ainda se encontram relativamente fechados - e o tema da sustentabilidade em seus três pilares centrais: econômico, social e ambiental.
A ocupação econômica desordenada pode causar graves problemas ambientais, visíveis tanto na Grande São Paulo como no desmatamento descontrolado da Amazônia. Muitas vezes, há complexos trade-offs neste assunto, a exemplo da polêmica questão da queima da cana-de-açúcar. Queima-se cana para viabilizar a colheita manual. Isso espalha fuligem nas cidades e reduz o balanço favorável de carbono da cana. A colheita 100% mecanizada resolveria boa parte do problema ambiental, mas geraria desemprego, na área social (hoje existem cerca de 250 mil cortadores de cana no Brasil).
Nas mesas de que participei, insisti na tese de que sustentabilidade, aquecimento global e biocombustíveis são temas sistêmicos, que exigem tratamento global. Infelizmente, o tema tem sido debatido no âmbito das empresas e das cadeias produtivas, mas não do planeta como um todo. Inúmeras empresas estão hoje empenhadas em corrigir os seus problemas ambientais e sociais, tentando reduzir o uso de materiais poluentes e a emissão de gás carbônico, melhorar a qualidade do trabalho e economizar energia. O debate avança para a construção de contratos e de mecanismos de coordenação de cadeias produtivas que gerem lucros respeitando o planeta e as pessoas.
Ocorre, porém, que ainda carecemos de um debate global, mais amplo e maduro, já que estes temas jamais serão adequadamente resolvidos apenas no "pequeno varejo" das empresas e dos países, mas dependem de mudanças estruturais no "atacado" do planeta. Por exemplo, há grandes dúvidas sobre se as culturas que vêm recebendo enorme apoio nos EUA e na UE (milho, colza, trigo, etc.) seriam aptas para solucionar desafios energéticos e ambientais. Essas commodities têm importância estratégica nas cadeias de produção de rações, carnes, lácteos e óleos vegetais. No evento, beneficiários dos fartos subsídios saíram com o surrado argumento da "indústria nascente" para justificar o crescente protecionismo. Vindo da boca de grandes empresas do mundo desenvolvido, este antigo conceito só pode soar como refinada ironia!
Entendo que o Brasil deve não só estimular, mas mesmo liderar este fervilhante debate que está ocorrendo no mundo. Precisamos estar presentes em Washington, Bruxelas, Genebra e Tóquio e ter uma ação protagônica nas discussões sobre aquecimento global, seqüestro de carbono, água e florestas, com governos, empresários e ONGs.
É também fundamental trazer maior consistência científica para o debate sobre o crescimento da cana-de-açúcar e seus impactos econômicos, energéticos, ambientais e sociais. A recente visita do presidente Bush colocou o Brasil sob os holofotes nesta área, e um grande conjunto de imagens e prognósticos deturpados vêm sendo divulgados pelo mundo afora.
O Brasil tem uma chance única de surfar à frente dos demais países na onda global da bioenergia, buscando consolidar o álcool e o biodiesel como commodities globais, produzidas de forma ambiental e socialmente correta, numa estratégia sólida que exige ações nas áreas de infra-estrutura, tecnologia, tributação, co-geração, política comercial e investimento. Trata-se de um enorme desafio, que só será possível com intensa coordenação dentro do governo e entre este e o setor privado.
Márcia Cabral Dietrich
Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Mídia especializada/imprensa
postado em 20/05/2007
Excelente artigo.Necessário até, porque contribui muito ao trazer para a pauta de discussões, ao ampliar o debate em torno de temas como a bioenergia, sobretudo quanto a possibilidade que o Brasil tem de sair na frente como o grande produtor mundial de biocombustíveis renováveis. Ao que tudo indica, o assunto ainda não despertou a merecida atenção, nem por parte do governo, nem por parte do setor privado, que ainda se limitam a discutir "perfumarias".