O presidente do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone), Marcos Jank, disse em entrevista ao AE Agronegócios que os possíveis avanços nos entendimentos na Organização Mundial de Comércio (OMC) sobre acesso a mercados agrícolas e redução de subsídios só ocorrerão após as saídas de Jacques Chirac e de George Bush das presidências da França e dos Estados Unidos, que acontecerão em 2007 e 2008, respectivamente.
Ao mesmo tempo, Jank prevê que China e Índia ganharão importância na OMC, deixando de ser obstrucionistas em agricultura. "Acho que há um cenário bom para o fim da década. Melhor certamente do que foi este ano", afirma. Na retomada do painel do algodão pelo Brasil contra os EUA, Jank considera que será "péssimo" para o mundo se os Estados Unidos não implementarem a decisão da OMC.
A bioenergia será outro fator de mudança nos mercados agrícolas internacionais nos próximos anos, afirma Jank, pois desviar o foco dos subsídios nos países ricos dos alimentos para a biomassa. Mas, embora avalie que a tendência seja de crescimento e exista certa euforia, ele alerta que o setor também passará por ciclos de altas e baixas. Ele critica a atual política agrícola brasileira - "que olha para o retrovisor" - e defende a união dos ministérios de Agricultura e Desenvolvimento Agrário em uma só pasta. Na política externa, o especialista diz que o Brasil erra ao ter politizado as negociações comerciais, e ao dar menos importância a acordos multilaterais como a Alca e insistir na relação Sul-Sul.
AE - As questões referentes à agricultura continuarão travando as negociações multilaterais de comércio no âmbito da OMC?
Marcos Jank - Sim, porque se a agricultura não avançar, não se poderá caminhar em outras áreas. No fundo, o que se espera é que a Rodada de Doha corrija as assimetrias criadas nas rodadas anteriores. Nas sete rodadas anteriores nunca se discutiu agricultura. Na oitava rodada, que foi a do Uruguai, ela entrou pela primeira vez na agenda. E acho que, sem dúvida, ela precisa ser tratada.
AE - Há alguma esperança de um acordo ainda este ano dentro da Rodada de Doha? O diretor geral da Organização Mundial de Comércio, Pascal Lamy, disse esperar acordo para 2007. Qual é a sua percepção?
Jank - Eu defendo o adiamento. Acho que não tem clima para fazer acordo este ano. Não há condições políticas para os países avançarem neste momento. Mandelson (o comissário europeu de Comércio, Peter Mandelson) não consegue ir além da questão do acesso aos mercados agrícolas. Os americanos estão travados nos subsídios agrícolas, não querem reduzir nada neste momento. Querem introduzir o que chamamos de cortes na água, porque não atingem o nível ideal de redução de subsídios.
E os países em desenvolvimento também estão bloqueando áreas inteiras da negociação, como é o caso da China e da Índia, na questão de acesso agrícola. A agricultura continua sendo o grande empecilho. A comunidade européia é protecionista em acesso, daí as cotas. Os Estados Unidos protecionistas em subsídios aos seus produtores. E a China e a Índia também com problemas de acesso. Então, não vejo como se possa avançar hoje. Talvez daqui a um ou dois anos.
Acho que no primeiro semestre do próximo ano haverá um debate muito grande nos Estados Unidos sobre a renovação da TPA (Trade Promotional Authority). E enquanto esse debate não for resolvido não há negociação que avance. Talvez lá por 2008 ou até 2009. Não seria espantoso que demorasse tanto tempo. A outra rodada também levou oito anos para ser concluída.
Foi de 1986 a 1994. E essa, iniciada em 2001, se fechar em 2009 levará o mesmo tempo que a outra. Mais à frente podemos ter boas notícias. Uma delas seria a saída de Jacques Chirac, no ano que vem, da presidência da França. Ele vem dificultando avanços na União Européia. E o presidente Bush sai em 2008. São notícias positivas porque os dois sempre tiveram uma visão unilateralista e podem ser substituídos por outros.
E temos pelo menos mais duas outras notícias positivas. Uma é que, para a China e a Índia, a OMC deve ganhar importância com o tempo. Os dois países têm hoje uma presença ativa no comércio internacional e não é possível que venham para a OMC apenas com posições obstrucionistas em agricultura. Terão que ser mais construtivos para fazer um acordo que em muitas áreas vão beneficiá-los enormemente. E, finalmente, eu acho que a bioenergia também é fator de mudança.
Hoje você tem não só uma progressão importante de uso de produtos agrícolas para produção de energia como também programas novos governamentais que estão sendo criados e que podem mudar o mapa de subsídios, deixando talvez de subsidiar alimentos para subsidiar energia, mas com impactos menos relevantes. Então acho que há um cenário bom para o final da década. Melhor certamente do que foi este ano.
AE - Até lá os países poderão fazer acordos bilaterais, entre países e regiões, como União Européia-Mercosul, mas mesmo isso parece difícil. A UE tenta impor mais barreiras ao frango brasileiro...
Jank - Você tem esse mundo de negociações multilaterais que vai devagar hoje, mas ele vai acabar se resolvendo. Hoje estamos numa maré de baixa. Já os bilaterais estão numa maré de alta. Houve uma explosão de acordos bilaterais pelo mundo, nas Américas, na Ásia. Até a União Européia anunciou uma política comercial na linha de retomar os acordos bilaterais. Todo mundo caminhará mais rapidamente nesta área. O que acontece nos bilaterais é que se você não faz, você leva (prejuízo), porque acaba sendo afetado negativamente pelos acordos que outros farão sem você.
Então, isto obriga a correr rápido. É só ver o que está acontecendo nas Américas. Os americanos estão fazendo acordos com México, com o Chile e agora com os andinos.
AE - Enfraquecendo ainda mais a Alca...
Jank - Não, a Alca já morreu. O pior é que vão se erodindo as preferências que o Mercosul e o Brasil têm naqueles países. Se conseguíamos vender produtos industriais a tarifas mais baixas para os latino-americanos, nossos vizinhos, os americanos não conseguiam porque não tinham os acordos da Alalc e da Aladi. Nós tivemos esses acordos. Agora, esses países latino-americanos estão fazendo acordos mais profundos e isso poderá desviar o comércio na direção dos Estados Unidos, erodir nossas preferências e criar uma situação em que os americanos entrem com mais facilidade.
AE - O acordo entre o Uruguai e os Estados Unidos é um exemplo?
Jank - É mais um. E é mais uma crise do Mercosul. A diferença gritante entre Lula e Alckmin será esta. Dentro das grandes políticas macro, a política comercial é a que vai mudar mesmo. Porque a política cambial continuará sendo o mercado livre; ninguém vai se aventurar hoje a regimes cambiais fixos. A política monetária é uma conseqüência da política fiscal e a política fiscal depende do governo.
Acho que os dois governos tentarão fazer as reformas. Agora, a política comercial, que é aquele braço importante da política macro que lida com o protecionismo comercial, essa política eu acho que mudou para pior no governo Lula com a orientação sul-americana de aproximação com Chávez, com Morales, com Fidel, com Kirchner de certa forma. Acho que seria melhor ter a Alca sendo implementada, ou um acordo com a União Européia, com países grandes, do que esses acordos menores.
Isso dividiu as Américas entre o grupo que está alinhado com a idéia de fazer acordos bilaterais com os Estados Unidos, no qual entrará eventualmente o Uruguai e o Paraguai, e o grupo mais Atlântico, vamos chamar assim, ou seja, Venezuela, Argentina, Brasil e Bolívia, na linha de um acordo de pouca ambição. Muita presença política, mas até agora ninguém sabe como será o processo de integração com a Venezuela. E o pior é que com a Venezuela ao lado será dificílimo fazer acordos com outros países, principalmente Estados Unidos e União Européia. Então esse governo ficou numa sinuca de bico.
AE - Foi uma aposta errada em sua opinião?
Jank - Eu acho que foi uma aposta errada. Foi uma aposta na linha de que estaríamos deixando de fazer a Alca para fazer a comunidade sul-americana das nações. Isso ainda era algo razoável, mas acabou não acontecendo. O que sobrou hoje é um acordo entre o Brasil, a Argentina e a Venezuela. Quer dizer, o próprio Mercosul piorou muito nesse período. E se o Uruguai e o Paraguai saírem agrava a crise. A Bolívia entrou, mas de uma maneira muito complicada.
AE - O presidente uruguaio Tabaré Vasquez diz que a aproximação com os Estados Unidos não fere o acordo do Mercosul.
Jank - Se os americanos derem um sinal positivo, ou oferecerem algo razoável, o Uruguai vai para lá. Eles só saem ganhando. Assim como talvez o Paraguai. Porque o Mercosul não avançou; essa é a verdade. Eles podem fazer um acordo importante com os EUA em produtos sensíveis. São exportadores agrícolas, e há produtos que falam muito na pauta exportação desses países, como, por exemplo, a carne bovina. Se eles conseguem uma boa concessão talvez valha a pena. E são menos avessos a abrir a área de serviços do que o Brasil.
Então, vejo que aquela lógica da integração sul-americana não se concretizou, ao contrário, a América do Sul está hoje profundamente dividida. Outras frentes, como União Européia e Ásia, também não avançaram. Com a China, conseguiu-se pouquíssimo. Na verdade, há um problema grave porque o setor empresarial paulista não quer ouvir falar de comércio com a China. Quer, na verdade, que sejam impostas salvaguardas.
Imagina se a indústria paulista aceitaria uma zona de livre comércio com a China. Imagina se a China aceitará abrir seus mercados agrícolas para o Brasil quando a relação estratégica que eles têm é com os Estados Unidos. Se eles forem abrir o mercado agrícola será para os EUA, que são seus maiores clientes. Acho que a gente se equivocou. Perdeu tempo.
AE - Mas no governo Lula o Brasil liderou a formação do G-20, que trouxe resultados nas negociações comerciais.
Jank - Foi o que melhor funcionou. Talvez a única grande conquista que o Itamaraty pode apresentar. Os dois contenciosos que estão aí (algodão e açúcar) foram feitos pelo governo anterior, mas o G-20 foi uma criação deste governo. Com intensa participação do setor privado, é bom lembrar. O G-20 trouxe o Brasil para o centro da negociação.
É claro que o G-20 em si é um grupo de pressão extremamente frágil, porque há países que são grandes exportadores e grandes importadores, portanto com interesses opostos. Mas, graças ao Brasil, o G-20 tem tido um papel de protagonista na Rodada de Doha. A minha crítica é a de que nós apostamos todas as fichas na OMC. A gente devia ter colocado parte de nossas fichas nos acordos bilaterais e regionais.
AE - Em alguns setores, como carnes e açúcar, o Brasil tem comércio intenso com países emergentes, mas tem dificuldades para entrar em países desenvolvidos, vide agora a questão do frango com a União Européia. Isso pode ser uma falha da política externa. No caso da carne, não tem por onde crescer...
Jank - É preciso estar consciente dessa tendência. Há dez anos, 80% do que o Brasil exportava em agronegócio era para países ricos e 20% para países em desenvolvimento. Hoje, são 60% para países em desenvolvimento e 40% para países ricos. Daqui a 10 anos serão 80% a 90% para países em desenvolvimento e 10% a 20% para países ricos. Ou seja, inverteu-se completamente o destino. Isso é uma ótima notícia para o Brasil porque o País quase perde para a China em bens intensivos em capital, em trabalho, como está acontecendo, mas jamais perderá para a China em recursos naturais.
Há uma enormidade de produtos para explorar, adicionar valor, e ganhar mercado. Todo o setor de alimentação, de bioenergia, de fibras têxteis, tantos setores onde a gente pode crescer. Essas são grandes oportunidades.
Agora, o crescimento tem ocorrido por causa do aumento de renda per capita nesses países. Esses países vêm se urbanizando, pessoas estão consumindo comida industrializada, importada. Então, é uma oportunidade fantástica que está se dando independente da política comercial.
O comércio está crescendo nos países em desenvolvimento porque esses países estão enriquecendo, estão aumentando a renda per capta, se urbanizando não porque haja uma política comercial ou acordo específico. É um movimento natural. Então, se conseguirmos, por exemplo, acordos sanitários que permitam que a gente venda carne com menos barreiras... Se o governo ajudasse, a gente poderia caminhar ainda mais. Mas tem que desenhar muito bem o que se vai fazer porque comércio se faz com todo mundo. Fazer política externa também se faz com todo mundo. Mas política comercial só se consegue com poucos países.
AE - O Brasil teve que novamente recorrer à OMC para que os EUA implementem a decisão de reduzir os subsídios ao algodão. Isso coloca em dúvida o poder da entidade em regular o comércio mundial?
Jank - O processo é demorado. Vai levar mais nove meses para decidir se o que eles tinham que fazer foi de fato feito. E vai passar de novo por um painel, é um inferno burocrático. Custa muito caro. Mas acho que é uma das coisas que dão credibilidade à OMC. Seria muito ruim ver os norte-americanos, que ajudaram a construir a OMC desde os anos 40, enfraquecendo o multilateralismo.
A rodada foi lançada em 2001, pela comoção causada pelos atentados terroristas. Foi apontada como sendo uma rodada que iria integrar os países em comércio e agora vemos a rodada suspensa, com contenciosos não sendo implementados. É um péssimo sinal para o mundo.
AE - A demora em alguns contenciosos pode desmotivar países a entrar com contenciosos na OMC?
Jank - Eu acho que se a rodada não avança, há mais estímulo para os países entrarem com contenciosos assim como para fazer acordos bilaterais. No caso do algodão, se tivéssemos perdido, os americanos hoje estariam esfregando na nossa cara que os subsídios eram legais, dentro do acordo. Os países continuarão recorrendo aos contenciosos, mas o sistema não é uma panacéia.
O sistema é complexo, demorado, caro. E não tem resultado garantido. Porque o país pode soberanamente não implementar a decisão. Em última instância o que se pode fazer é retaliar. Mas qual é a sua capacidade de retaliar os Estados Unidos? É baixa. Por isso, é complicado. A solução ideal não é o contencioso, a solução ideal é um acordo fortalecido. O objetivo é a regra do jogo e não o juiz. Precisamos de regras claras e, na agricultura, a regra não é clara.
AE - Além do contencioso do algodão, há outros produtos que poderiam provocar novas ações do Brasil na OMC?
Jank - Nós, do Ícone, estamos estudando de seis a sete possibilidades de contenciosos. Todas elas possíveis. Não podemos revelar quais, mas há possibilidade dentro da OMC.
AE - Entre alguns destes casos estaria a questão do frango hoje discutida com a UE?
Jank - O frango ainda está numa fase de negociação a respeito da aplicação do artigo 28 (que permite que países revejam tarifas) com a União Européia. Há um certo impasse, por isso não pensamos em contencioso neste momento. Mas é uma possibilidade.
AE - O aumento da produção de biocombustíveis no mundo, ao mesmo tempo em que pode aproximar os países em termos de comércio, pode virar um motivo de controvérsia afetando o Brasil, como um dos maiores produtores desse produto?
Jank - Na questão dos biocombustíveis, acho que primeiro é preciso saber qual é a capacidade da agricultura em produzir um bem que substitua os combustíveis fósseis tradicionais. Até onde a agricultura pode ir e em que grau de eficiência. Porque há uma grande diferença entre etanol e biodiesel. Há também diferença dentro de cada setor, diferença entre fazer etanol de cana, de milho ou de trigo.
A cana é muito mais eficiente em todos os sentidos. Assim como, dentro do biodiesel, a soja é mais eficiente que a mamona. Talvez a palma seja mais eficiente que a soja. Então, é uma questão ainda a ser melhor estudada. Acho que há certa euforia no Brasil, mas é preciso tomar cuidado. Euforia pode gerar coisas complicadas porque toda a commodity por definição é cíclica, com altos e baixos. Mas eu diria que a tendência da bioenergia é de crescimento.
AE - O Brasil está respondendo na velocidade certa aos questionamentos que os países fazem em relação ao plantio de determinadas cultura, como a soja na região amazônica?
Jank - Eu acho que nós temos um novo paradigma, seja na decisão da indústria de soja do Brasil de se comprometer durante dois anos a não comprar soja de áreas desflorestadas seja nos avanços do Round Table on Responsible Soy (Fórum Global de Soja Responsável), onde se inicia um diálogo internacional sobre os padrões que poderão virar uma certificação do que é soja responsável social e ambientalmente. Mas é um processo lento.
É preciso resolver o problema na origem. Na soja, a origem do problema é o desmatamento ilegal, é a ausência do direito de propriedade na Amazônia, onde 50% das terras são devolutas. Hoje o sujeito desmata para garantir posse. Enquanto não houver uma mudança estrutural na maneira como o poder público atua na Amazônia, enquanto não houver mecanismos privados com regras e contratos, dificilmente a realidade vai mudar.
AE - Que mecanismo de política agrícola poderia diminuir a pressão sobre a floresta?
Jank - Acho que o mais importante, primeiro, é o respeito à legislação brasileira e, mais do que isso, criar valor para manter a floresta em pé. Hoje o incentivo é para desmatar. É possível criar esse valor. Com relação à pecuária e à soja, diminuiria a pressão sobre a Amazônia se houvesse maior produtividade nas áreas de pastagens, por meio da integração com o cultivo de lavouras.
A soja, quando chega numa área de pastagem, melhora enormemente a produtividade e até a sustentabilidade dessa área, porque é um melhorador de solo, pois fixa nitrogênio e, por isso, reduz a necessidade de adubo. A soja foi a vilã, como se ela fosse a culpada pela ocupação da Amazônia. Acho que é muito mais grave o que está ocorrendo com madeira ilegal.
AE - Mato Grosso, por problemas de logística, está perdendo espaço como grande produtor de grãos. Na sua opinião, isso continuará ocorrendo?
Jank - É muito interessante, porque uma das perguntas que se faz é por que há tanta soja no Mato Grosso. Uma das razões era que a logística da soja, até pouco tempo atrás, funcionava bem, ainda que muito ineficiente. Gastava-se 20%, 25% do que a soja valia para transportá-la.
Este ano está se chegando a 40%, 50%. Isso inviabiliza a soja. E qual seria a alternativa mais lógica? Uma é construir estradas, abrir ferrovias, usar modais mais baratos, como a hidrovia. A segunda alternativa é reduzir o protecionismo comercial nos outros países. Grande parte do crescimento da monocultura da soja ocorreu porque os países ricos protegem carnes e lácteos.
Se pudéssemos exportar mais carne bovina, de frango e suína, mais leite, a soja seria usada para alimentar os rebanhos. O Mato Grosso diversificaria a agricultura e transportaria carne, que tem um frete muito menor, porque se está adicionando valor. Acho que os países ricos que acusam a monocultura também deveriam fazer um mea culpa e pensar que poderiam permitir a entrada de produtos como aves, lácteos.
AE - Em um artigo recente, o senhor faz uma crítica ao fato de existirem no atual governo dois ministérios: um para tratar do agronegócio e outro para atender à agricultura familiar. No caso de o candidato Geraldo Alckmin vencer o segundo turno, o senhor acredita que essa divisão não existiria?
Jank - Não é bem isso. O agronegócio é um marco conceitual fabuloso criado por John Davis nos anos 50, nos EUA. Quando se fala agronegócio, se fala de um sistema integrado de produção de alimentos, fibra e energias, que começa na pesquisa genética e termina no prato do consumidor. Qualquer produtor faz parte do agronegócio. É assim que ele é entendido no mundo inteiro. Mas aqui no Brasil alguém resolveu dizer que o agronegócio refere-se às multinacionais e os grandes produtores e, por isso, estaria se contrapondo aos pequenos produtores e aos sem-terra.
Há essa falsa dicotomia que não tem a menor sustentação em nenhuma literatura. Acho que deveria haver um ministério só, cuidando do agronegócio. É como se tivesse um ministério das grandes indústrias e um das pequenas indústrias. Isso não existe. No Centro-Oeste, qualquer produtor patronal foi um pequeno produtor um dia. E as políticas mais urgentes para o agronegócio são as políticas macro, não são as agrícolas.
O que a agricultura mais precisa hoje é de políticas que jamais estiveram na esfera do Ministério da Agricultura, que são câmbio estável e mais desvalorizado, infra-estrutura, segurança jurídica, respeito a direitos de propriedade e negociações internacionais. E tem as coisas que são dos Ministérios (ligados à agricultura) que são questões do pequeno produtor, qualidade dos produtos e a questão da administração de risco, seguro rural, uso do hedge.
O governo heróico seria aquele que conseguisse fazer três coisas. Uma é unificar os dois ministérios, a outra é monitorar o programa de reforma agrária e apontar uma data para a conclusão do processo. O Brasil deveria ter um momento em que essa reforma agrária termine. Não pode ser um processo eterno em que se pega todos os desempregados que existem e coloca no campo. Tem que se fixar uma data para terminar esse processo, monitorar o uso dos recursos e acabou. Não é possível que isso continue por décadas.
E, por fim, há renegociação das dívidas. Grande parte do mau uso do recurso ocorre porque o governo fica emprestando a uma taxa mais baixa, muitas vezes empresta a quem não deveria, a quem não paga, empresta mal e depois fica renegociando. São várias dívidas, de muito tempo atrás. Isso precisa parar. O que o governo deveria criar em política agrícola e agrária deveria estar voltado para a competitividade do agricultor.
A política agrícola/agrária deve servir para tornar o produtor mais eficiente e não para, por exemplo, ficar eternamente reescalonando dívida, ou então, ficar gastando com assistencialismo. Uma das críticas que se faz ao Pronaf é que uma parte desses recursos tem sido usada para assistencialismo puro, que vira consumo corrente. O sujeito recebe o dinheiro e compra uma televisão, ou uma geladeira, e não necessariamente investe na agricultura.
AE - Este seria um desafio para o novo presidente? A Conab divulgou uma estimativa de safra menor que a produzida no ano-safra anterior, o produtor está descapitalizado, há todos os problemas de logística. Ou seja, o socorro ao produtor no ano que vem deve continuar no mesmo nível.
Jank - A política agrícola brasileira está permanentemente olhando para o retrovisor. A gente tem que olhar pra frente. A política agrícola no passado foi muito boa no sentido de gerar bens públicos. O maior deles é a pesquisa e o desenvolvimento de tecnologia agropecuária para a área tropical. O que tornou o Brasil grande no mundo foi desenvolver variedades de soja, plantio direto, gramíneas, melhorar gado zebuíno. Isso meio que se perdeu.
Hoje há uma política apropriada por grupos. Grupos de tecnocratas, grupos de sem-terra, grupos de grandes agricultores que não pagam suas dívidas. Isso é altamente criticável. O conflito entre os dois Ministérios (Agricultura e Desenvolvimento Agrário) para mim é algo que precisa ser mudado.
AE - No caso de o governo não renegociar mais a dívida, qual seria a alternativa?
Jank - Renegociar dívida é trabalhar em cima de algo que já estava equivocado lá atrás. Existe o hábito de pegar dinheiro e sair comprando ativos, expandindo produção loucamente. Vem um ano ruim e o governo se habitua a jogar uma bóia. O sistema deveria ser outro.
Primeiro, as pessoas não deveriam se endividar com dinheiro público e sim no sistema bancário, como em qualquer país, com uma taxa de juros mais baixa. O crédito rural já é uma excrescência em si. Não deveria existir. O governo deveria gastar dinheiro com coisas mais inteligentes. Agora, mesmo que ele exista, deveria ser totalmente repensado - crédito para quê? O governo deveria dar recursos para aquilo que vai tornar o agricultor mais competitivo.
Acho que não deveria ser função do Ministério da Agricultura executar uma política de crédito, nem mesmo de preços garantidos. Isso é uma coisa do passado e o governo deveria pensar em coisas do futuro, como a estrutura sanitária, os corredores sanitários do País. É um absurdo que não se esteja colocando mais e mais recursos em qualidade e seriedade.
Se o Brasil hoje é o maior exportador de carnes do mundo, exporta mais de sete bilhões de dólares nas três carnes, deveria existir uma estrutura mais sofisticada e investimento em pesquisa para criar uma geração mais eficiente de produtos e sementes. É preciso fazer um trabalho de rastreabilidade, que é uma exigência internacional, questão do cuidado ambiental, coisas que fazem parte de uma nova agenda que não foi incorporada pela política agrícola, que continua olhando para trás, resolvendo problemas causados por baixo uso de mecanismos de defesa. Por exemplo, uma coisa bem simples.
O crédito rural deveria continuar de maneira mais cíclica. Quando o produtor está vivendo uma fase de euforia não é o momento de o governo injetar mais dinheiro neste setor porque mais na frente vai dar problema. O governo deveria ajudar no momento em que as coisas estivessem em baixa de forma anticíclica.
E quando ajudasse deveria condicionar o crédito ao hedge de preços. Se o produtor não conseguir se defender, reduzir seu risco de preços, o governo não deveria permitir que captasse qualquer recurso, porque senão se incorre em um problema gravíssimo porque o sujeito não sabe se vai pagar e, se todo mundo não vai pagar, isso fica uma fortuna.
O agronegócio mudou tanto nos últimos dez anos, mas a política agrícola não mudou. Continua-se achando que se deve fazer mais reforma agrária, que nunca foi devidamente mensurada em seus impactos econômicos. Continuamos fazendo crédito rural do jeito que sempre se fez antes. Ainda existe toda essa cultura de preço mínimo. O que tínhamos que fazer é mudar o conceito do que é política agrícola, olhar para a frente e não para o retrovisor.
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