O segundo movimento, neste caso, especificamente brasileiro, é o Brasil dar o pontapé inicial no processo de se juntar formalmente ao Canadá no contencioso contra os subsídios agrícolas norte-americanos. Embora este segundo tema nada tenha que ver formalmente com a Rodada Doha, o movimento brasileiro decorre do recente insucesso das conversações entre os quatro protagonistas - Brasil, EUA, Índia e União Européia - e pretende servir de pressão sobre os EUA para fazerem concessões na rodada.
O texto Lamy é visto com sentimentos dúbios pelos negociadores. Do ponto de vista do processo negociador, é a única saída hoje disponível para viabilizar o término das negociações ainda neste ano. Esse é o sentimento reconfortante. Já do ponto de vista da substância, o Brasil teme que o texto venha pesado na indústria e pouco exigente na agricultura, sobretudo quando se trata de acesso a mercados e apoio doméstico nos países desenvolvidos. Daí o sentimento de apreensão.
Um eventual texto Lamy - eventual porque sua viabilidade dependerá da sobrevivência das minutas de agricultura e indústria às consultas que ocorrerão em setembro - reflete o desgaste da chamada abordagem de baixo para cima, em que todas as propostas deveriam partir dos países, e não da interpretação dos burocratas da OMC. Além das suspeitas dos países em desenvolvimento sobre a pessoa do diretor-geral, a aversão à abordagem de cima para baixo data da Rodada Uruguai, por conta do texto Dunkel, diretor-geral do antigo Gatt, que apresentou sua minuta de acordo em 1991, que serviu de base para a conclusão da rodada três anos depois. Se a história de repetir, um texto Lamy poderá viabilizar esta rodada, mas não em 2007, e sim lá por 2009.
As negociações da Rodada Doha vivem o momento do "manifeste-se agora ou se cale para sempre". Há uma profusão de documentos técnicos sendo apresentados pelos diferentes países e coalizações como estratégia de marcação de posição. Certamente, a caixa de entrada do presidente do Comitê Agrícola, Crawford Falconer, está lotada de documentos de posicionamento. Entre eles está um que o Icone preparou juntamente com nossos parceiros do Mercosul.
Apesar de não ter lido nenhum deles, posso afirmar que tais documentos não contêm concessões e reiteram, sobretudo, as posições correntes dos países e coalizões. Ou seja, quaisquer que tenham sido as convergências encontradas pelos quatro protagonistas em Potsdam, elas não servem como compromisso junto ao diretor-geral da OMC. Nem mesmo o mais ansioso dos países com interesse em fechar um acordo da rodada mostraria suas flexibilidades neste momento.
Um exemplo interessante desse movimento de ações individualizadas é a recente manifestação do Brasil de pedir consultas aos EUA sobre os subsídios concedidos ao milho. Já há um painel aberto pelo Canadá no Órgão de Solução de Controvérsias da OMC desde o começo de junho. O Brasil tem acompanhado o processo, mas decidiu ascender à posição de protagonista, já que um pedido de consultas pode desembocar facilmente na abertura de painel. O movimento brasileiro é fruto da percepção de que os EUA têm mais a oferecer na rodada.
O Brasil tem feito um uso muito peculiar dos contenciosos no caso dos subsídios agrícolas. Essa decisão do milho segue a mesma orientação do caso do algodão. O Brasil tem usado os painéis como forma de pressão sobre os EUA para que estes façam concessões no âmbito da Rodada Doha. Essa estratégia tem implicações importantes porque o Brasil deixa de usar os instrumentos de retaliação do Órgão de Solução de Controvérsias como mecanismo de promover reformas na política agrícola norte-americana, e devota toda a esperança na Rodada Doha.
O fato é que esta estratégia não tem funcionado, até porque os EUA condicionam seus movimentos na rodada a ganhos nos outros elementos do pacote negociador (tarifas industriais, por exemplo). É correta a decisão de se juntar ao Canadá, mas o governo ainda precisa provar que tal decisão é estratégica, e não apenas reação aos não-avanços da Rodada Doha.
Da perspectiva dos interesses ofensivos brasileiros, sobretudo no campo agroindustrial, um texto Lamy não é, necessariamente, ruim. Do ponto de vista da diplomacia, é, porque todas as glórias do acordo cairão sobre o diretor-geral e as luzes de grande articulador que brilhavam sobre o Brasil se vão apagar. Mas o que me causa apreensão, por outro lado, é o preço que o setor agroindustrial terá de pagar por um acordo menos ambicioso, dado que hoje prevalece o enfoque pragmático de que ou se fecha um acordo no segundo semestre, ou se adia para 2009, depois das eleições norte-americanas.
Se nos aspectos gerais esse acordo virá atraente, os elementos específicos que interessam a cada um dos setores agroexportadores brasileiros poderão minar os ganhos desta rodada. O acordo será muito importante para sustentar o sistema multilateral de comércio, mas não vai mitigar as demandas do agronegócio brasileiro por menos protecionismo e maior abertura de mercado em países desenvolvidos e em desenvolvimento. Assim, qualquer que seja o acordo, a pressão por negociações bilaterais é a nova prioridade do agronegócio e tema para futuros artigos.
Envie seu comentário: