Diante de tamanha diversidade, descrever a natureza das manifestações constitui uma tarefa hercúlea. Levará algum tempo até que um natural processo de decantação nos permita entender o que realmente está ocorrendo nas ruas do Brasil. Menos difícil será especificar os efeitos dos protestos sobre o sistema político atual. Devido ao conhecimento acumulado sobre o funcionamento das instituições brasileiras, é possível traçarmos hipóteses para o futuro. Embora não tenhamos certeza sobre os rumos dos acontecimentos, há pelo menos alguns alertas que merecem ser feitos, dado que apontam tendências contrárias ao que imagina boa parte dos manifestantes.
Entre as muitas lições tiradas dos estudos na área de economia política, duas merecem referência no atual contexto: i) políticos não são indivíduos altruístas, que trabalham unicamente para o bem comum, possuíndo interesses pessoais; ii) o fato de um grupo de indivíduos ter as mesmas preferências não implica que trabalharão para um fim comum. Da primeira, sabemos que o político profissional teme o desemprego como qualquer trabalhador. Como a campanha eleitoral custa caro, é natural que alguém a financie, e daí o peso dos lobbies sobre os legisladores. Não é segredo para ninguém que muitos grupos econômicos oferecem recursos que auxiliam os políticos a manterem o emprego, obtendo em troca apoio no Congresso para seus interesses.
Assim, determinado setor da economia pode obter legislação mais favorável caso consiga angariar a “simpatia” dos legisladores. Como a “simpatia” não é grátis, porém, desafios devem ser contornados. Um dos principais ocorre quando uma empresa pega “carona” nos gastos feitos por outras. Mais especificamente, determinado agente pode se beneficiar de uma lei que proteja o mercado sem gastar um centavo para isso desde que as suas concorrantes o façam. O resultado é que, não raramente, ações coletivas são impedidas devido à ausência de garantias de que todos cooperem. Para que todas as empresas paguem a conta do lobby, é necessário a emergência de mecanismos que ofereçam incentivos à participação e punições aos que decidirem pegar uma “carona” no esforço alheio.
Em equilíbrio, um sistema político oferece um preço médio para o lobby. Determinado grupo de agentes econômicos, ao buscar uma legislação favorável para o setor, calculará os benefícios e custos de financiamento da atividade política. Como gastos, contabilizarão não apenas o financiamento da campanha, como também os recursos necessários para estabelecer as estruturas que fundamentam a ação coletiva. Exemplos incluem uma associação ou uma cooperativa. Sempre que necessário, também buscará mitigar os riscos envolvidos em sua estratégia. Possível alternativa já é adotada por diversos setores, que financiam todos os candidatos mais competitivos nas eleições, aumentando as chances de estar com o vencedor ao fim do processo. Para o político, cujo cálculo envolve os recursos necessários para a campanha e o retorno em votos, tal arranjo é bem visto, dado que assegura a perenidade no emprego.
Ocorre, porém, que a saída de milhões de pessoas às ruas sem uma motivação única encarece o preço dessas relações. Detentores dos votos, os indivíduos pressionam os legisladores, cujo futuro no emprego depende também da popularidade do eleitorado. Em resposta aos protestos, estes podem impulsionar decisões que vão de encontro aos interesses de grupos econômicos com lobbies atuantes. Diante de tantas demandas, qualquer setor pode ser afetado. O resultado é o aumento da incerteza no relacionamento entre os políticos e tais grupos de pressão, dado que o financiamento da atividade política não garante o apoio às preferências dos lobbies em contextos de convulsão social. Nunca se sabe qual será a próxima demanda, e é provável que, em meio à diversidade de pedidos, a escolha do setor a ser afetado seja menos previsível que de costume.
Com isso, é necessário muito cuidado antes de conclusões como “já que está todo mundo protestando, a saída é sair à rua também”. No caso da agricultura, por exemplo, boa parte das agendas defendidas historicamente pelo setor se basearam em uma ação coletiva tradicional, em que a pressão sobre os legisladores se deu por meio da criação de lideranças políticas e o gasto de recursos na construção de uma agenda capaz de persuadir os legisladores. É provável que os atuais protestos, ao invés de reforçar o peso de tais práticas, estejam contribuindo para erodir parte de suas vantagens. Desconsiderar o cenário aqui exposto poderá levar a frustrações no futuro.