Ao escolher este apaixonante tema, fui juntando uma quantidade de material que, por uma questão de espaço, e de diversidade, dividi em três artigos. Os anteriores publicados em 06 e 27 de fevereiro, trataram "água" genericamente como recurso natural e matéria prima no mundo, e especificamente dos recursos hídricos brasileiros. A matéria atual, abordará temas relativos à agricultura.
Embora a superfície da Terra seja constituída em 70% por água, destes, apenas cerca de 2,75% é de água doce, que pode ser consumida pelo ser humano, em qualquer de suas atividades: industriais, agrícolas e pessoais. Água é um recurso natural renovável, mas não infinito.
A escassez de água, hoje restrita a uma parcela de regiões da Terra, tende a se alastrar. Segundo o International Water Management Institute, já em 2025 o Brasil poderá ter falta de água para atividades econômicas, se o acentuado quadro de degradação atual não for revertido.
Recente levantamento do IBGE com 5.560 prefeituras brasileiras, resultou em que 80% delas têm algum tipo de problema ambiental. O maior deles é o assoreamento dos rios, que atinge municípios onde vivem 77% da população brasileira. Lamentavelmente, a agricultura é uma das grandes causadoras da degradação dos mananciais, por má utilização de fertilizantes e defensivos agrícolas, e práticas deficientes de manejo de solo. Assim como são as queimadas, e não a poluição industrial ou urbana, a maior causa para a poluição atmosférica (efeito estufa). Isso prejudica a própria atividade agropecuária, já que em 35% dos municípios pesquisados verificou-se perdas expressivas de produção, devidas à escassez de água, à erosão, e ao esgotamento do solo.
Há 506 anos atrás, a carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei D. Manuel relatava: "Querendo-a aproveitar (a terra), dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem". Não mais. Água é um recurso natural renovável, mas não infinito.
Fonte: Unesco (2003)
Dependendo do ângulo que se analise, agricultura consome de 70% a 90% da água utilizada para uso "humano". De fato, os números são estarrecedores: gasta-se 2.500 litros de água para alimentar bem uma pessoa, diariamente. Ou, aproximadamente, um pouco mais de 1 litro para cada caloria. Como a população mundial cresce, e cada vez alimenta-se melhor, o uso de água em atividades agrícolas deverá dobrar até 2050. É compreensível que se estimule o uso de irrigação, já que terra não "estica", devendo-se perseguir, portanto, aumento de produtividade para saciar as necessidades humanas. Porém...
Espero não criar desafetos com o que vou dizer a seguir. Será uma decisão acertada, realizar altos investimentos em projetos grandiosos, como, por exemplo, a transposição das águas do Rio São Francisco? Ou mesmo em sofisticados sistemas de irrigação por aspersão? Na Arábia Saudita planta-se trigo usando-se água do mar dessalinizada para irrigação. O custo do trigo saudita? Cem (100!!!) vezes mais que seu valor.
Recente estudo do Consultative Group on International Agricultural Research afirma que quase nunca vale a pena realizar vultosas inversões em irrigação, e sugere que pequenos investimentos, quase sempre, podem render melhores resultados. Naturalmente, não se deve generalizar este conceito "minimalista", que não se aplica à moderna e eficiente agricultura de precisão, desde que produzindo bens de alto valor agregado. [1]
Infelizmente, governos e empresas ao redor do mundo têm se concentrado em opções mais caras e com pior relação de custo/benefício. O estudo argumenta que modestos investimentos em áreas agrícolas inteiramente dependentes de chuva, podem render excelentes resultados, principalmente em países pobres. Mais da metade da produção agrícola mundial vem de plantações dependentes de chuvas (e não de irrigação artificial). Mas, como a exclusiva dependência de precipitações é arriscada, pequenos canais que conduzam o excesso de chuva para reservatórios selados, podem suprir a inconstância das chuvas, e aumentar a renda de pequenos agricultores de países pobres.
Na Tanzânia (África Oriental), onde estive em julho de 2006, visitei um programa simples de captação de água de chuva que tem rendido excelentes resultados. Em região próxima a Arusha, pequenos agricultores têm podido plantar vegetais e arroz, ao invés de milho e sorgo, o que lhes confere renda 2 a 3 vezes maior do que tinham antes.
O estudo do CGIAR, acima mencionado, afirma que, se medidas simples como essa forem tomadas em larga escala, a área sob uso agrícola no mundo precisaria aumentar apenas 10% [2] para satisfazer as necessidades humanas, até 2050. Obviamente, não estou dizendo que projetos de irrigação, mesmo os com altos custos de infra-estrutura, são dispensáveis. E sim, e apenas, que há outras alternativas, mais baratas e muito eficientes. Como tudo na vida, é uma questão de bom senso e de equilíbrio.
Catástrofes com irrigação não são novidade. Aferições arqueológicas provam que o Saara já foi uma área verdejante, até que o término da água do subsolo transformou a região em um deserto. A política stalinista de que "água que entra no mar é água desperdiçada" (1929) fez com que o Mar de Aral se visse reduzido a 25% de sua área original, o que levou pobreza à população, altamente dependente da pesca. É amplamente aceito hoje em dia que, com a milenar exceção do Egito, nenhuma civilização baseada em irrigação sobreviveu, seja porque a água acabou, seja pelo assoreamento de rios, seja pela salinização resultante de excesso de irrigação.
Uma das medidas mais eficazes (e baratas) para preservarem-se os recursos hídricos, é a proteção das nascentes, que a lei 7.754/89 chama de "paralelogramo de cobertura florestal". Isto é feito através da proteção (ou reflorestamento) do entorno da nascente, e seu isolamento a acesso de animais de grande porte. Na década de 90, na fazenda Água Milagrosa (Tabapuã, SP) se verificava, a cada seca severa, uma alarmante redução do volume de água das represas.
Passamos a proteger as nascentes, atividade de baixíssimo custo e altíssima recompensa. Nos anos seguintes, percebemos que, embora o volume de água se reduzisse durante a estiagem, o efeito era muito menor do que antes. E bem menor ainda quando comparado com represas similares, de nossos vizinhos.
Para aqueles que julgarem que estou sendo excessivamente severo quanto ao uso de água em atividades agrícolas no Brasil, aqui vai uma homenagem ao setor: Em 2006, o superávit da balança comercial do agro negócio brasileiro foi recorde. Exportações de cerca de US$ 47 bilhões, para importações de US$ 6 bilhões, com saldo positivo de US$ 41 bilhões. Não existe atividade econômica no país que apresente resultado tão exuberante, malgrado juros altos, dólar depreciado, valor de insumos em alta, e valor de algumas "commodities" em baixa. Imaginem se o quadro fosse outro!
Em tempo: escrevo este artigo no final de 2006, de forma que as condições atuais de juros, valor de dólar, de insumos e de "commodities" podem estar diferentes, e para melhor. Espero que sim. Mas, ainda assim, nada mudará, pois as condições em que a safra 2006 foi plantada e colhida, foram as descritas acima.
Voltando ao nosso tema. Nos bancos escolares aprendemos que a água é insípida, inodora e incolor. Assim descrita, parece coisa insossa. Não é. Água é vida, ou morte.
Fontes e bibliografia:
1. "Água no século XXI - Enfrentando a Escassez" - José Galizia Tundisi
2. Banco Mundial 2004-2005
3. "Cadillac Desert" - Marc Reisner
4. Consultative Group on International Agricultural Research (2006)
5. "Grito das Águas" - Leonardo Morelli.
6. International Water Management Institute Report (2002/2004)
7. Levantamento do IBGE sobre condições ambientais de 5.560 Municípios brasileiros - 2005
8. Pacific Institute - Oakland, Califórnia - Peter Gleick
9. "Poluição - A Morte dos Nossos Rios" - Samuel Murgel Branco
10. "Pillar of Sand" - S. Postel
11. Professor Carlos Gabaglia Penna (Engenharia Ambiental - PUC/RJ)
12. The Economist (03/1998; 07/2003; 08/2006; 09/2006)
13. Unesco / OMS (ONU) 2003-2004-2005
14. "Water Wars" - Marq de Villiers
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[1] Em relação à transposição do Rio São Francisco, além da miríade de argumentos contrários, pergunto-me: daqui há décadas, pela má utilização da água e pelo aquecimento global, haverá água suficiente para ser "transposta"?
[2] De 1.470.000.000 hectares para 1.600.000.00 hectares.
Enaldo Oliveira Carvalho
Jataí - Goiás - Consultoria/extensão rural
postado em 20/03/2007
Sugiro ao Sr. Carlos A. Ortenblad que continue escrevendo artigos sobre o precioso líquido. Água IV, Água V...
Mesmo diante de tantos problemas, podemos dizer que ainda bem que estamos vivendo na era da Internet, o que nos permite acesso rápido a diversas fontes de informação. Dessa forma, os diversos temas e os problemas que nos afligem podem ser expostos a um grupo maior de pessoas, bem como analisar as questões sob pontos de vista diferentes.
No entanto, não podemos nos envaidecer com os recursos tecnológicos fornecidos pela sociedade moderna e por outro lado esquecer dos fatores básicos que regem as condições essenciais para a existência de vida na Terra, dentre esses, a água, como refere o artigo.
O alerta quanto ao uso racional da água deve ser estendido a todos os setores da sociedade. E medidas necessárias para sua preservação devem ser tomadas, independentes de interesses políticos e/ou econômicos. Pois a vital importância da água extrapola todas as circunstâncias que não as regidas pela natureza. Do contrário, quanto maior for o usuário maior será o prejuízo, independente da taxa de juros, do câmbio e da balança comercial.