Tudo isso, é claro, vem da cabeça do homem. O fim das monarquias, das cortes e das nobrezas dinásticas parece ter deixado uma lacuna no coração das pessoas e hoje elas querem imprimir sangue azul em seus animais. Basta ver o nome de registro de cavalos, cachorros, carneiros e bois. Não são todos, mas uma boa parte deles carrega no nome a mesma pompa dos nomes dos antigos nobres. Quando não é isso é a genealogia: Fulano filho de Cicrano, neto de Beltrano nas duas linhas, fechado na linhagem Tal...
Eu prefiro ver as raças como recursos utilizáveis. As raças não devem ser intocáveis, sob a pena de não poderem evoluir. Preservar a "pureza" de uma raça só se justifica se ela, ao ser misturada com outras, correr o risco de perder algo essencialmente seu. Esse algo essencial também deve ter algum sentido, seja prático ou mesmo emocional, para ser preservado. Se alguém quer preservar o chifre espiralado do Merino, porque essa é uma característica muito particular e marcante da raça, que assim seja. Eu mesmo acho aqueles chifres muito bacanas.
A pureza por si só, no entanto, além de não existir (veja no artigo anterior) não justifica ações apaixonadas em defesa da raça. Assim, o Merino mocho tem a mesma importância do Merino "padrão", pois é a qualidade da lã que faz essa raça tão especial.
Muito se tem falado dos riscos da miscigenação de raças nacionais com outras exóticas. Feita assim a esmo esta mistura pode ser mesmo muito prejudicial. Pode-se, por exemplo, perder a adaptação das raças naturalizadas aos nossos ambientes, resistência a doenças comuns no nosso meio, etc. No entanto, misturas geraram raças importantes. A mistura de duas raças, uma européia (a inglesa Dorset) e outra africana (Persa-Cabeça-Preta) gerou uma terceira, a Dorper, hoje muito mais badalada que suas ancestrais.
A raça Corriedale, tão defendida pelos seus criadores e tão importante para o Sul do Brasil e para o Uruguai, descende da Merino, da Leicester e da Lincoln, esta última já quase extinta. A Targhee, descende da Corriedale com Rambouillet e Lincoln. O Ile de France tem também o Merino como antepassado. A Santa Inês descende da Morada Nova, da Bergamácia, da Rabo Largo e outras, então cadê as raças puras?
Antigamente era comum os livros se referirem a raças puras e cruzadas. A raça Merino sempre foi tida como pura. Mas pensando bem, quando ela chegou à Espanha, trazida pelos romanos ou pelos mouros, deve ter se miscigenado com ovinos locais. O Texel atual pouco tem dos ovinos da ilha de Texel, pois daqueles animais só se aproveitou a capacidade de sobrevivência em ambiente "hostil", com forragem pobre e baixa disponibilidade de minerais.
O importante é procurar em cada raça aquilo que faz com que ela se destaque e tentar preservar essas características. Por outro lado é preciso não ter medo de ousar e buscar em outras raças o complemento para aquilo que falta na raça em questão. Assim, se as coisas fossem feitas às claras e com técnica, não seria nenhum absurdo usar-se a Suffolk ou a Hampshire Down para melhorar características na Santa Inês. O erro está em fazer este tipo de cruzamento e depois acobertá-lo, chegando a registrar animais cruzados como filhos de pais da mesma raça, com objetivos escusos, para competir em pista e vencer com facilidade os outros concorrentes.
O uso honesto de cruzamentos para incorporar genes, e, conseqüentemente características, é plenamente possível e tem até nome: introgressão. Poderíamos buscar, por exemplo, maior prolificidade para a Santa Inês em cruzamentos com a Morada Nova, selecionando-se as fêmeas cruzadas mais prolíficas e absorvendo novamente para a Santa Inês, sempre com a seleção para a prolificidade. Da mesma forma poderíamos usar, para o mesmo fim, o Merino Booroola. O Merino Booroola tem um gene (também chamado Fec B) que confere alta prolificidade, e muitos programas de melhoramento pelo mundo afora usam introgredir esse gene para raças locais. Depois disso, em algumas gerações tem-se novamente a raça local, porém com o gene Fec B. Essas coisas são quase impensáveis aqui no Brasil, pois quem "abre" a raça para cruzamentos dilui seu precioso sangue azul.